André Carneiro cineasta

A transição entre as décadas de quarenta e cinquenta foram bastante produtivas para André Carneiro. Período em que começa a interessar-se pelo hipnotismo, fotografia, cinema e que realiza seu trabalho mais importante como editor: o jornal literário “Tentativa”. André contava com sua irmã Dulce Carneiro e o amigo César Mêmolo Jr. É de lá que vêm as primeiras informações referentes à criação do Clube de Cinema. Um grupo de pessoas patrocinado pelo “Tentativa” pretendeu fundar na cidade outra associação nos moldes das que existiram em várias capitais do país.

Para a edição seguinte surgiram entabulações com duas empresas exibidoras locais. A seção solene de fundação do Clube ficou para um dia a ser escolhido no mês de julho de 1.950. Para a ocasião se realizaria, também, uma exposição de pintura, cuja seleção de obras ficaria a cargo de Aldo Bonadei com outros pintores de renome nacional. Mais tarde, no jornal, as noticias confirmaram a fundação do Clube de Cinema e a realização da Exposição Coletiva de Pintura. Tudo aconteceu em Atibaia. Começava ali as atividades do cineclubista André Carneiro. Eram as famosas Sessões Especiais de Cinema e Arte, sempre com debates no final de cada exibição.

Pouco tempo depois André adquire uma câmara filmadora 8 milímetros e começa a pesquisar arte cinematográfica. “O cinema é nossa sombra simbólica. Nós somos a nossa sombra projetada, mas nem sequer podemos comandá-la na corrida diária do planeta ao redor do sol. Mas reproduzimos artisticamente, com a chamada Linguagem do Cinema, a continuidade dos gestos, a aparente sequência dos pensamentos e o corte no tempo das ações…O cinema é sempre um travelling imaginário, espelho dos personagens nos quais nos identificamos.”

André passa a ser roteirista, diretor e câmera, realizando o que chamava de “exercício de arte cinematográfica amadora”. São dessa época “Estudos de Continuidade e Movimento” (1950), “Solidão” e “Último Encontro” (1951) e “Estudo para um Enredo Dramático” (1956). Todos rodados com atores amadores na cidade de Atibaia. São filmes de arrojado valor estético, premiados em vários países. O filme “Solidão” recebeu elogio até do renomado crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes. Em 1954, seu roteiro de “Os Pereyras” venceu o Concurso Nacional de Cinema do Quarto Centenário de São Paulo.

Outro roteiro, “A Vida de Meneghetti”, foi vendido ao produtor italiano Carlo Ponti, que infelizmente não realizou o filme por ter tido um grande prejuízo no Brasil. “Fiz um roteiro para o grande Carlo Ponti, que alguns conheceram como o marido da Sofia Loren. A história era sobre a vida do mais célebre ladrão brasileiro, Meneguetti, cuja biografia resultou em diversos livros. As aventuras que passei para escrever esse roteiro daria um filme, principalmente minha visita ao célebre presídio Carandiru onde Meneguetti passou 18 anos preso.”

Nos anos setenta André começa a trabalhar como diretor de propaganda da Companhia Cacique de Café Solúvel, dirigindo inúmeros comerciais para televisão com personalidades como Pelé e Emerson Fittipaldi. No cinema profissional passa a destacar-se como roteirista, trabalhando com grandes nomes do cinema nacional (Roberto Santos, Abílio Pereira de Almeida e Walter Hugo Cury). O cineasta Roberto Santos comprou os direitos do conto “O Homem Que Hipnotizava”, cuja intensão era transformá-lo em filme. Infelizmente, Roberto Santos morreu sem o realizar. O diretor e dramaturgo Ziembinsky, porém, comprou o conto para o programa Caso Especial, da Rede Globo, que foi produzido e anunciado sob o título de “Mergulho no Espelho”. Não foi ao ar por proibição da censura do governo militar.

Mais tarde, seu conto “O Mudo” foi roteirizado e transformado no emblemático longa metragem “Alguém” (1980), com direção de Júlio Xavier Silveira. Esse filme é obrigatoriamente citado quando o assunto é a filmografia nacional de ficção científica. Co-produzido pela Lynx Filme e Embrafilme, teve no elenco Nuno Leal Maia, Myriam Rios e Ewerton de Castro. “Alguém” foi exibido poucas vezes numa sala de cinema em São Paulo. Chegou a ser transmitido pela TV, mas jamais foi lançado comercialmente. Segundo André Carneiro, “o filme é artístico demais para o grande público”. Júlio Xavier numa entrevista comenta: ”O filme nasceu como piloto de um projeto da Lynx Filmes, série para televisão, com 10 ou 12 episódios autônomos de 45 minutos cada, com temática fantástica, inspirada no Realismo Fantástico latino-americano e na ficção científica. Esse projeto surgiu em função de lei promulgada pelo então Ministro da Educação, Ney Braga, determinando que a produção nacional tivesse uma porcentagem das séries exibidas em televisão. Isso levou várias produtoras de publicidade a entrar com projetos. Quando “Alguém” já estava pronto, a Globo lançou séries produzidas em seus estúdios, como Malu Mulher e Carga Pesada, o que abortou o projeto da Lynx, muito embora este já estivesse com 10 ou 12 sinopses aprovadas pelo Ministério da Educação”.

André Carneiro foi professor de roteiros no Senac de São Paulo, onde dirigiu o piloto do programa sobre profissões “Deu Trampo”, em setembro de 1997, para os canais a cabo da TV Senac. Por volta de 2007 o conto “A Escuridão” foi adquirido pelo produtor espanhol José Manuel C. Hernández a fim de ser transformado em filme. O conto é de 1963. A história despertou o interesse também de americanos e esteve em vias de virar filme. André lembra que seu agente literário e tradutor nos Estados Unidos, Leo Barrow, também professor de literatura na Universidade do Arizona, em Tucson, pediu-lhe licença para escrever um roteiro cinematográfico baseado na história, por ele traduzida. “O roteiro interessou um diretor mexicano que já dirigira filmes em Hollywood. A intenção de Barrow era encaminhar o roteiro a um grande produtor, seu amigo. Mas esse diretor acabou cometendo um crime passional, o que interrompeu definitivamente todo o processo” – conta André.

Trinta anos depois Saramago lança o livro “Ensaio Sobre a Cegueira”, com temática muito semelhante, vindo em seguida sua versão cinematográfica. O projeto espanhol de adaptar “A Escuridão” também não teve continuidade, provavelmente por esse fato. André Carneiro via o mundo esteticamente, e dominava o código de cada linguagem. “O cinema é movimento, está mais perto da nossa científica realidade: somos átomos com partículas subatômicas em constante movimento que define nossos passos e nossos abraços, sempre na ilusão de reter a felicidade, pássaro cego na escuridão da nossa cabeça”.

 

Solidão

“Solidão” representou o Brasil no 13º Concurso Internacional de Cinema Amador, realizado em agosto de 1951, em Glasgow, Escócia, sendo depois exibido na França e Itália.

Cenas do cotidiano. Câmera detalhista. A importância do olhar, propiciando explícita leitura por quem assiste. Olhar e gestual em primeiríssimos planos. Escritor, fotógrafo e artista plástico, linguagens de André num mesmo concerto. Rostos, enquadramento cortado, objetos também, fotogramas personalizados. Não há sobras no silêncio literal do filme, silêncio igualmente sugerido. Eloquente. Pequeno acidente interrompe o vazio na relação homem, mulher. Marido e esposa? Antes, ele lia o jornal, indiferente à mulher costurando com linha e agulha manual. A atenção do homem se desvia numa evidente censura. Exercício psicológico e de documentação do cotidiano, os filmes de César Mêmolo e André Carneiro. A linguagem é essencial, simples, signos plenos de conotação. A relação entre coisa, pessoa ou objeto, mais importante do que a pessoa que representa e a ideia-conceito. Pode-se trabalhar com o não-atores, como fez Mário Peixoto em Limite. Contexto, linguagem o que mais importa. Forma originária de fazer cinema, em que prevalece um senso comum apurado.

Do livro Cinema com Pipoca, de Euclides Sandoval. 

 

Estudo de Continuidade e Movimento

“Estudo de Continuidade e Movimento” premiado em 1951 no 3º Concurso Cinematográfico Nacional para Amadores, patrocinado pelo Foto-Cine Clube Bandeirantes e realizado no Museu de Arte de São Paulo. Em 1952 recebeu o prêmio “Estímulo” de melhor filme, gênero experimental, representando o Brasil, junto com “Último Encontro” em mostras de cinema no Reino Unido, Itália, França e Holanda.

O filme mudo recorre a elementos de luz e sombra, presentes também em fotografias de Carneiro como “Corredor das Sombras” (1956) e “Igreja do Rosário” (1958), para narrar a trágica história de um amor. Como salienta, o título é o movimento de objetos, atores, fenômenos naturais, que dá continuidade entre as diversas cenas propostas no filme.

Silvio Alexandre 

 

Último Encontro

“Último Encontro” Carneiro focaliza neste filme o fim da relação entre um casal de enamorados. A câmera focaliza os movimentos corporais dos membros inferiores e superiores do corpo em um primeiro momento, sem nunca captar a face dos atores. Em seguida é revelada a face de cada ator/personagem e suas reações ao fim do relacionamento. Este filme dá maior enfoque ao fim do trágico relacionamento que ocorre em “Estudo de continuidade e movimento”.